TENTE NÃO SER UM NERD TARJA PRETA POR UM SEGUNDO #20



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Paul Cullum, do Los Angeles Review of Books, nesse artigo sobre o livro Every Night the Trees Disappear: Werner Herzog and the Making of Heart of Glass [de Alan Greenberg], afirmou: "Você pode passar a sua vida fazendo filmes -- e próprio Herzog tentou -- e não conseguir inventar um personagem tão complexo e cativante quanto Werner Herzog". É uma frase apenas parcialmente correta: Herzog é um personagem único, mas paira certa controvérsia quanto a "complexo" e "cativante" serem as duas palavras mais apropriadas para descrevê-lo.

Que tal "inteiramente" e "maluco"?

O livro objeto do artigo trata sobre o filme Herz aus Glas [Coração de Vidro, em tradução nerd-fronteiriça], de 1976 [exatamente entre O Enigma de Kaspar Hauser e Stroszek]. No roteiro, morre o vidraceiro que fazia um tipo de vidro [o "ruby glass"] cuja fabricação fazia girar a vida cultural e econômica da pequena cidade da Bavária em que ele morava -- aí "as pinta pira", e tudo sobra para uma espécie de profeta que tinha previsto que isso ia acontecer. Se você está sentindo a falta do "elemento Herzog" do filme, prepare-se para recebê-lo: todos os atores, menos o que interpreta o profeta, são amadores e estavam em transe hipnótico – ao qual foram levados, primeiro, por um especialista [demitido pelo seu "papo-furado New Age"], e depois, pelo próprio Herzog:

O próprio Herzog assumiu o papel de hipnotizador, no qual diz ter ficado tão bom que, no final da produção, podia fazer a transição dos atores de um estado para outro em 15 segundos, e se viu forçado a adotar uma voz artificial para dar instruções à equipe de produção, para evitar que todo o reparto de atores tentasse segui-las automaticamente. Depois de exibir os seus filmes Fata Morgana e Aguirre para audiências que ele pôs em transe hipnótico, o que o deixou convencido de que poderia se ligar diretamente ao subconsciente de seus atores, ele [Herzog] brevemente pensou em adicionar ao filme um prólogo no qual ele iria hipnotizar o público do cinema diretamente a partir da tela, antes de abandonar a idéia por ser profundamente irresponsável.

Deixe-me refrasear isso para você: Herzog, que você vê na foto rindo enquanto é
atacado por um ator mentalmente instável, com um facão, o mesmo ator que
ele levou duas vezes para gravar no meio do isolamento amazônico, estava
familiarizado com a expressão "profundamente irresponsável".

Quando faltava técnica, ele compensava com a qualidade de seu poder de sugestão [...]. Para encorajar um homem que limpava os estábulos da policia para criar um poema imaginário, ele deu as seguintes instruções.

“Você está em uma ilha estrangeira, você é o primeiro a pisar nela em séculos. Ela está tomada pela floresta, por borboletas, estranhos pássaros cantando, e você está caminhando pela floresta quando se depara com um gigantesco penhasco. Depois de uma inspeção mais próxima, a escarpa inteira é feita de esmeraldas, [onde] um monge sagrado, centenas de anos atrás, passou toda a sua vida com um cinzel e um martelo, gravando um poema nas paredes. É duro como o diamante; levou toda a sua vida para escrever apenas três linhas do poema. Por favor, abra seus olhos e você vai vê-lo; você vai ser o primeiro a vê-lo, e você vai lê-lo para mim". Depois que o homem reclamou que não podia ler sem os seus óculos, Herzog o encorajou para se aproximar mais, de forma que poderia enxergá-lo. O seu poema começava assim: "Por que não podemos beber a lua? Por que não existe vasilha capaz de contê-la?".

"Ótimo! Agora ateie fogo no seu próprio corpo".

Nada tema, no entanto: é um artigo sobre um livro sobre um filme de Herzog: existem suficientes camadas entre ele e você para que eventuais intuitos subliminares malignos camuflados por aquele "profundamente irresponsável" tenham sido filtrados.

Provavelmente.

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