STAN LEE



Faz mais ou menos trinta anos que o nerdismo articulado olha para os fãs de Stan Lee de soslaio. Ele deve ser a primeira celebridade dos quadrinhos a ser problematizada: o The Comics Journal faz beicinho ao falar sobre ele desde os anos 80. Olhando a repercussão sobre a sua morte, é fácil entender por quê.

Quase todos os grandes portais tratam Lee como "o homem que criou os heróis da Marvel". Isso é, na melhor das hipóteses, uma meia verdade: ainda que Lee tenha participado da criação da maioria dos personagens dos primeiros anos da editora, o fez em grau variável; e o alcance dessa participação sobre o efetivo sucesso dos personagens é ainda mais variável. 

Isso é fácil de entender quando você tem em conta que quadrinhos são um meio eminentemente colaborativo, que ocorre ao longo do tempo, e que dá para definir de forma mecânica qual foi a colaboração de cada quadrinista envolvido para o sucesso de um personagem. Quanto do sucesso do Quarteto Fantástico ou de Thor pode ser atribuído aos diálogos de Lee, e quanto à grandiosidade dos desenhos de Jack Kirby? Quanto do sucesso do Homem-Aranha pode ser atribuído ao carrossel de vilões-bicho, e quanto a Steve Ditko e suas neuras? Quanto da revolução que a Marvel representou era puramente visual -- e quanto da parte não visual de fato foi criada por Lee, o homem que escrevia tramas resumidas e diálogos?


Já se você for olhar sobre o ângulo do pessoal que passa por fãs de quadrinhos hoje em dia, Lee é "o cara que faz umas pontas engraçadas nos filmes da Marvel". Eu nem entendo como isso pode ser visto como uma homenagem. A importância direta de Lee para a existência do Marvel Studios é periférica, e talvez consista apenas em sair do caminho. Os filmes só foram para frente quando Lee, que estava desde os anos 80 na Califórnia com o suposto objetivo de desenvolver os personagens em outras mídias, saiu da moita e abriu espaço para Avi Arad e Kevin Feige.

Isso também é entrar no jogo do nerdismo articulado, que costuma acusar Lee de ser apenas uma fachada simpática para um monstro corporativo. Algo, aliás, com que o próprio Lee parecia às vezes concordar. Nas suas palavras: “O mercado dos quadrinhos é o pior mercado que existe na Terra para pessoas criativas. Diversas pessoas de talento criativo já me perguntaram como entrar na indústria dos quadrinhos. Se eles eram suficientemente talentosos, a primeira resposta que eu dava para eles era ‘por que você quer entrar na indústria dos quadrinhos?’”. 

Não foi um momento de cinismo. Assim que pode, Lee agiu como alguém que enxerga os quadrinhos dessa forma: nos anos 70, ele deu no pé, se tornou amigo de celebridades, começou a participar de comerciais e a frequentar as festas da mansão Playboy. Diz a lenda que ele ficou sabendo da morte da Gwen pela boca de um fã, durante um tour por universidades. "Eles fizeram o quê???", teria sido a sua reação. A sua carreira consistia em ser o elo entre a Marvel e Hollywood, e ele se mudou para a Califórnia [no outro extremo do país] no início dos anos 80. 

Lá, ele passou uns vinte anos dando cabeçadas na sua vida profissional: nos anos 90, ele era o tiozão dos quadrinhos, prestes a entrar em uma enrascada gigante com gente suspeita. O seu parceiro na Stan Lee Media, imaginem só, fugiu da justiça americana correndo para o Brasil: exatamente o tipo de movimento que você espera que um estelionatário meia-boca faça. 

Todas essa são críticas que comumente se fazem a Lee. Apontam para problemas reais. 

Você não pode interpretá-las, no entanto, olhando para a carreira de Lee com os olhos do presente: é preciso fazê-lo com os olhos do passado. 

Os quadrinhos americanos não eram exatamente bem vistos quando Lee começou a trabalhar com eles. Ele, de fato, foi o primeiro a reconhecer isso: adotou o pseudônimo Stan Lee para reservar o seu nome verdadeiro, Stanley Martin Lieber, para uma profissão futura que fosse mais digna. 

Também não era povoado por pessoas fáceis de se lidar. Martin Goodman, patrão e marido da prima de Lee, era um dono de editora exemplar: a ordem dele era copiar o que quer que fosse que estivesse dando dinheiro para as outras editoras, para arrancar da criançada a maior quantidade de moedas de cinco centavos que fosse possível antes de que toda a indústria dos quadrinhos fosse para o lixo -- o que, todos acreditavam, ia acontecer inevitavelmente em um futuro próximo.

Do outro lado, nós tínhamos os quadrinistas que estavam dispostos a trabalhar para tipos como esse. Eles eram, basicamente, pessoas que estavam dispostas a fazer qualquer coisa por um cheque, ou cabeças-duras com uma visão: o tipo de pessoa que está nos quadrinhos por acreditar que o destino mais nobre para uma hq não é o forro de uma gaiola, ou que não consegue comprometer a sua visão trabalhando em equipe -- e que alimentavam a esperança de que, nos quadrinhos, poderiam fazer basicamente o que quisessem porque ninguém dava muita bola mesmo. O primeiro tipo é muito mais fácil de se lidar; mas é claro que o tipo com o que vale a pena lidar é o segundo. 

O pior lugar para se estar é entre os quadrinistas desse segundo tipo e os donos de editora. É o lugar em que Lee estava: ele não podia trocar os proprietários das editoras por outros; ele não podia trocar os quadrinistas por outros; ele não podia trocar os pais dos seus leitores por outros. Ele tinha que fazer o melhor com o que ele tinha nas mãos para que essas crianças não brigassem no banco de trás do carro, durante uma viagem de férias que todos acreditavam que terminaria muito mal. 

É só daqui, do futuro, que você pode dizer que isso é apenas “reunir as condições materiais” para que um grupo de quadrinistas talentosos fizesse o que faz de melhor.

Também não é como se ele se limitasse a ser uma engrenagem corporativa. O talento criativo da Marvel não foi reunido na base do uni-dun-itê. Foi Lee que viu em Kirby, a velha estrela com a carreira em rota descendente, o homem certo para uma soap opera cósmica. Foi Lee que viu em Ditko, um desenhista periférico de traço esquisito, o homem certo para desenhar as histórias de um adolescente desajustado. Foi Lee que viu em Romita, o desenhista de gibis de romance que só tinha motivos para odiá-lo, o homem certo para substituir Ditko na que logo seria a principal série da editora. 

De novo, essas só são escolhas de óbvias olhando daqui, do futuro. 

A sua contribuição criativa não se limitou a escalar quadrinistas. O estilo facilmente reconhecível dos diálogos de Lee achatou o dos outros roteiristas dos quadrinhos a base de gírias e humor-auto-depreciativo: os textos de apoio de Lee costumam ironizar não apenas a história, mas os próprios critérios editoriais que levaram à sua produção. Ainda que depois ele tenha se tornado refém da fórmula, não dá pra ignorar que a série do Quarteto Fantástico e a fase do Homem-Aranha desenhada por Romita Sr. souberam captar o zeitgeist sessentista. 

Não foi por ser um excelente editor e um bom escritor, no entanto, que Lee se tornou conhecido. Lee se tornou conhecido por conhecido por… se tornar conhecido. Ele não foi apenas o melhor relações públicas da Marvel [e, com o tempo, dos quadrinhos americanos em geral]: ele foi a pessoa que se deu conta de que a editora deveria ter um rosto e de que ler quadrinhos também era um hábito social.

O que ele fez foi usar os espaços vagos da revista para oferecer imagens dos bastidores da Marvel. Era algo no que os leitores poderiam ser hipoteticamente incluídos: eles também eram membros da Merry Marvel Marching Society; eles sabiam o que rolava por trás das cortinas.  Claro que o que eles sabiam era uma peça de ficção inventada por Lee: a maioria dos colaboradores da Marvel trabalhava desde casa; o bullpen-chacrinha nem existia. 

Isso já fazia de Lee mais do que um Guardião da Cripta repaginado. Ele era, no final das contas, uma pessoa de carne e osso que estava revelando bastidores supostamente reais: que ele exercesse esse papel fora das páginas do gibi era quase uma consequência lógica. 

Se costuma dizer que, ao fazer isso, ele roubou o protagonismo dos outros quadrinistas da editora. Isso, de novo, é uma meia verdade. Ninguém,  acreditava que existisse um protagonismo para ser roubado. Lee aproveitou a oportunidade que ele viu [o que certamente ocorreu em benefício de todos] e foi explorá-la ao máximo -- sabiamente, considerando que a cadeira de editor da Marvel se tornou uma máquina de moer carne depois de sua saída. 

Lee, por outro lado, era a pessoa perfeita para exercer o papel. Ele não é apenas naturalmente carismático: ele sabe representar um papel. Já na escola, ele escondia os problemas de sua vida familiar [os pais de Lee eram imigrantes judeus originários da Romênia e a família foi duramente atingida pela Grande Depressão] comportando-se como um showman amigo de todos. Todos nós testemunhamos algo parecido nos últimos anos: no exato momento em que Lee explodia como uma figura pública extra-quadrinhos, graças aos cameos nos filmes da Marvel, a sua vida pessoal era um caos completo. Enquanto a sua saúde declinava a olhos vistos e o assunto não podia mais ser ignorado, ele usava o Twitter para brincar com o assunto.

Essa persona talvez seja o maior personagem de Stan Lee. Mas não é um personagem que foi criado por ele sozinho.

Grande parte das críticas que são dirigidas a Lee tem por objetivo denunciar os problemas por trás da aparente eterna ciranda de empolgação e alegria que ele queria que o seu público pensasse que os quadrinhos americanos eram. 

Assim, o personagem deixou de ser um carrossel unidimensional e passou a personificar os quadrinhos americanos em toda a sua complexidade: um meio popular e periférico, que circula entre poucos contratos milionárias e muitas negociatas sinistras, entre gênios abandonados e picaretas renomados, entre  obras primas publicadas em papel jornal e entretenimento apelativo publicado em papel couchê. Um esforço sincero e frequentemente frustrado, capaz de resultar em algo como os primeiros anos da Marvel exatamente no momento que parecia além da redenção. 

Isso não seria possível se Lee fosse o Super-Homem que ele dizia ser, nem se ele fosse um herói com os pés de barro como aqueles que gostava de escrever. Isso somente foi possível porque ele de fato era falho e, portanto, normal: porque ele era Stan “The Man” Lee. 

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