MULHER MARAVILHA, DE PATTY JENKINS E GAL GADOT: ALÉM DAS TRINCHEIRAS

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Mulher Maravilha
Patty Jenkins, Geoff Johns, Allan Heinberg, Zack Snyder, Charles Roven, Deborah Snyder, Richard Suckle
[Warner Bros, 2017]

Mulher Maravilha, o filme, gerou muitas respostas contraditórias. Isso aconteceu em grande parte porque o nerdismo estava fazendo as perguntas erradas.

A primeira dessas pergunta é: o filme da Mulher Maravilha é uma peça de propaganda feminista? 

Por um lado, parte do resenhismo viu no roteiro de Mulher Maravilha uma execução da proposta da versão feminista da Jornada do Herói de Joseph Campbell, proposta por Maureen Murdock em A Jornada da Heroína. É um argumento tão fácil quanto falso: é verdade que o filme segue os passos básicos da Jornada da Heroína, mas isso é porque a Jornada da Heroína segue os passos básicos do monomito, um dos “modelos” de roteiro mais usados de Hollywood nos últimos quarenta anos.

A diferença entre a jornada da heroína e a do herói é que Murdock propõe uma forma de realizar esses passos para alcançar um determinado objetivo: algo como a emancipação feminina. Assim, ela sugere que a jornada da heroína comece com a protagonista exercendo uma função tipicamente feminina em uma sociedade patriarcal [o “mundo comum”], rejeitando-a por uma tipicamente masculina [“cruzamento do primeiro portal”], o que, depois de um aparente sucesso inicial, leva ao fracasso [a morte simbólica], “ressuscitando” de uma forma que combina o feminino e o masculino em uma personalidade integrada [isso é um resumo: a jornada inteira tem uns vinte passos]. 


Esse argumento, no entanto, falha porque Mulher Maravilha já começa em uma sociedade matriarcal idealizada em que as mulheres combinam com sucesso em sua personalidade elementos masculinos e femininos. Hipólita, a mãe da Mulher Maravilha, que não quer que a sua filha seja uma guerreira, não é nem uma exceção a essa regra: o seu papel é o mesmo do pai que reprova o romance da mocinha e do mocinho em uma comédia romântica, ou seja, é um blocking character melodramático. 


Se poderia dizer, também, que o filme é feminista porque é protagonizado por uma mulher. Conforme a própria Murdock, o próprio Campbell enxergaria na jornada heróica algo tipicamente masculino: “mulheres não precisam fazer a jornada. Elas estão em toda a tradição mitológica. O que elas precisam fazer é se dar conta que ela é o lugar no qual as pessoas estão tentando chegar”.

No entanto, Carl Jung, que é algo como um pai para Campbell, nega que isso faça diferença: ainda que ele diga que o arquétipo do herói seja tipicamente masculino, ele é útil para o desenvolvimento do animus, o componente masculino da personalidade feminina. E isso acontece, conforme o próprio Jung, independentemente do sexo do protagonista: graças ao animus, uma mulher pode colocar-se no lugar do herói protagonista da jornada.

Também não custa lembrar que existem diversas narrativas heróicas pré-feminismo que são protagonizadas por mulheres, a começar pelas bíblicas Débora e Judite. Não estamos falando, portanto, da reinvenção da roda.

GIRL POWER, ANTIGO TESTAMENTO STYLE
Outros enxergaram feminismo na idealização de Temiscira. De fato, alguns elementos do monomito não são apresentados da forma tradicional, e Temiscira é um deles: Compare-a com Tatooine, ou com o mundo em que Neo vive antes de tomar o comprimido vermelho, e facilmente se percebe que ela é um “mundo comum” idealizado -- mesmo se comparado com Tatooine, um mundo de fantasia onde a vida é ordinária:


É UMA FAZENDA DE UMIDADE, PÔ
Campbell descreve o “mundo comum” normal do monomito como um lugar “pálido”. O que há de pálido em Temiscira?


O outro elemento do monomito que não está apresentado de forma tradicional é o mentor. O papel é de Steve Trevor: é ele que mostra a aventura para a Mulher Maravilha no início da história, que reúne os seus aliados e que faz com que ela “ressuscite” no final [quando a heroína está quase se convertendo para o lado negro da força, é o exemplo de Trevor que faz com que ela “retorne”]. 

De novo, você só precisa compará-lo com outros mentores da cultura pop para perceber que existe uma diferença: Trevor está mais para sidekick cômico do que para Gandalf. Isso parece um esforço no sentido de evitar que um homem esteja em posição de superioridade em relação à Mulher Maravilha -- o roteiro de Joss Whedon para o filme, recentemente revelado, sofreu diversas críticas precisamente por isso.

O papel de Temiscira e Trevor, contudo, tem outra função quando você contempla o quadro completo -- preocupando-se mais com o filme e menos com a meia dúzia de mala que pode usar ele como propaganda.

O filme da Mulher Maravilha é uma aventura heroica, como até quem não viu nem os trailers deve concordar. Como toda aventura heroica, tem um herói e um vilão. Nesse caso, tanto o herói quanto o vilão estão claramente identificados [apesar de uma pirueta narrativa em relação a esse último]. Talvez seja até o filme de super-heróis mais maniqueísta de todos os que foram lançados de Blade para cá.

A Mulher Maravilha é uma heroína nada problematizada: é corajosa, correta, e inspiradora. No início do filme ela é mais ingênua do que no fim, mas esse é o arco do personagem [aventuras heroicas frequentemente tratam desse processo, conforme Campbell e Jung atestam]: não significa que ela esteja errada; apenas cria o momentum necessário para a cena em que ela decide fazer a coisa certa [uma das melhores do filme, a propósito]. O vilão, por outro lado, é tão vilão que tem um minion que ri da própria maldade e é o DEUS DA GUERRA. Em uma história assim, com esse nível de idealização, o herói evidentemente representa uma concepção do que é certo e o vilão, do que é errado. 

A partir daqui, a resenha vai ter mais spoilers. Deixe de frescura e continue lendo.

O momento definitivo para entender o que o vilão do filme representa é o final: nele, é revelado que o general alemão que parecia ser o vilão do filme não é Ares, o deus da guerra. Ares, na verdade, é um político inglês que está tentando forçar a paz com a Alemanha. Mais importante: no discurso que segue à revelação, ele explica que não é capaz de causar a guerra diretamente, mas apenas de agir como uma força corruptora sobre os homens. 

DESENHANDO.

Depois dessa revelação, ele passa a tentar convencê-la a unir-se a ele para causar a perdição dos humanos -- essa falha criação de Zeus. Ela vacila, mas se volta contra Ares: a humanidade pode ser falha e não merecer a redenção, mas é redimível; e o papel dela é redimi-los. O que isso tudo significa é o seguinte: a única forma de fazer desse filme mais explicitamente cristão, seria transformar a Mulher Maravilha em uma cruz que lança raios no vilão. 

É exatamente isso que acontece:


Com o filme visto assim, a forma pela qual ele apresenta Trevor e Temiscira faz um outro sentido. Quando a Mulher Maravilha está vacilando sobre o seu papel, logo após Ares revelar que ele apenas influencia os homens, é o sacrifício de Trevor que faz com que ela perceba que a humanidade é redimível. É importante, portanto, que ele não seja um Gandalf ou um Obi Wan Kenobi: ele precisa ser falho para se redimir. 

Funciona também como alívio cômico. As cenas mais engraçadas do filme são protagonizadas por Trevor: o fanfarronismo do personagem funciona de uma forma auto-depreciativa. Isso é importante: junto com a também humorística sequência da chegada da Mulher Maravilha em Londres, um ajuntado de piadas do estilo peixe fora d’água, ajudam que o filme tenha um tom mais light que os outros da DC.

Já Temiscira é uma ilha paradisíaca [trocadilho involuntário] e idealizada em que o certo e o errado são facilmente distinguíveis; faz sentido, portanto, que a Mulher Maravilha, criada por Zeus, tenha vindo de lá para um mundo cinza e sombrio para mostrar que essa diferença existe. 

Pode parecer forçado falar do cristianismo da mensagem de um filme com versões pop de personagens da mitologia grega. Mas é o cristianismo que foi forçado na mitologia fajuta. Zeus/Deus é bonzinho: criou o homem, “and mankind was good” como diz a narradora, fã do Gênesis. E ele expulsa Ares/Lúcifer do “céu”. Se você não percebeu a evidente referência, a imagem que ilustra esse acontecimento [em uma sequência bonita, ainda que expositiva, logo no início do filme] parece uma reinterpretação em versão teto de igreja de Paraíso Perdido:


Também pode parecer forçado falar em maniqueísmo em um filme ambientado na Primeira Guerra Mundial. De novo, não é. Esse, aliás, é um dos grandes acertos do filme: reforça a ideia de que a frente de batalha, uma uma terra estéril e confusa, está sob o domínio do vilão -- é o que Northrop Frye chamaria de “waste land”: a Primeira Guerra Mundial é a guerra da Terra de Ninguém, poucas coisas poderiam ser mais “waste land” do que isso.


Existem pelos menos outros dois acertos na ambientação. A Primeira Guerra Mundial é o primeiro conflito industrializado em grande escala da história. Existe algo de especialmente não-heróico nisso: é uma batalha que consiste em generais jogando pessoas sobre metralhadoras. É um ângulo, inclusive, que o filme aborda explicitamente ao propor um contraponto entre essa matança sem rosto e o treinamento das amazonas.

O outro acerto está na ampliação da verossimilhança que ela proporciona: é mais fácil aceitar que existe uma ilha desconhecida habitada por amazonas, protegida pela magia, antes do início da Segunda Guerra Mundial -- o conflito que, ao menos na imaginação das pessoas, diminuiu o planeta e substituiu o sobrenatural pela ficção científica na cultura popular. É por isso que Corto Maltese desapareceu na Guerra Civil Espanhola [essa transição, aliás, é um tema frequente nos seus álbuns] e que existem alienígenas em Indiana Jones IV.

A segunda daquelas perguntas erradas que o nerdismo estava se fazendo é: o filme da Mulher Maravilha é mais parecido com os filmes da Marvel? 

São muitas as pessoas que estão dizendo que sim. O problema dessa pergunta é que ela parte de pressupostos errados: de que os filmes da Marvel, um dos quais tem o seu auge em uma cena em um aeroporto de concreto, na qual diversos heróis lutam entre si, são mais coloridos e inocentes, enquanto que os filmes da DC, que costumam acabar com heróis socando monstros no meio de uma grande explosão colorida, são mais sérios e realistas. Na verdade, isso é como dizer que o Spawn de Todd McFarlane é mais sério que os Vingadores de Kurt Busiek. Pra você que não é nerd dos quadrinhos: ambos ocupam diferentes latitudes da mesma longitude do mesmo espectro. 

De qualquer a forma, a resposta é não. Mulher Maravilha é esteticamente coerente com Batman V Superman [ou seja, com Zack Snyder, até agora o mastermind dos filmes da DC, mas que pariu Homem de Aço em conjunto com Christopher Nolan; vamos esquecer que Esquadrão Suicida existe e ser mais felizes].

É verdade que o filme tem algumas cenas mais coloridas do que BvS. É o caso do início do filme, em Temiscira, a cena da taverna, quando a Mulher Maravilha e Trevor encontram aliados, que é iluminada como um quadro de John Sloan,...


...e da cena de relax pós-batalha em uma pequena cidade belga recém libertada [inspirada em Eterno Amor, de Jean Pierre Jeunet e protagonizado por Audrey Tautou]:



Mas são cenas específicas, com funções narrativas específicas: idealizar Temiscira, fazer do grupo de apoio da Mulher Maravilha uma família, criar um respiro onírico, etc, mais ou menos como a desértica “knightmare scene” de BvS [bastante destoante do resto do filme: transcorre de dia]. E, mesmo elas, tem uma pretensão visual que os filmes da Marvel simplesmente não tem.

No geral, Mulher Maravilha é um filme com um monte de CGI [tem cenas inteiras de CGI; curiosamente, o laço da verdade é um efeito prático] e cenas de luta em câmera lenta. Também é um filme azul, ciano [que é azul e verde], que vira uma explosão laranja/dourada noturna no fim. São as cores da personagem [quase todos os personagens, de qualquer forma, usam azul, dourado e vermelho], mas também é a paleta de cores de BvS.



A confusão existe porque há uma diferença entre BvS e Mulher Maravilha. Mas ela não está na clareza da imagem: está na clareza da que Patty Jenkins conseguiu dar para a mensagem, e Snyder não. Mulher Maravilha tem piadas; é difícil aguentar totalmente sério três horas de gente vestida de morcego. E Mulher Maravilha tem a sua mensagem soletrada em um diálogo final constrangedoramente expositivo e brega. Mesmo que o filme fosse um bloco cinza com trilha sonora de ranger de dentes, seria impossível acusá-lo de ser sério demais. 

A outra diferença entre os filmes da Marvel e Mulher Maravilha é a originalidade. 

Os filmes da Marvel não são ruins: ao contrário, eles são considerados bem divertidos por quase todo mundo. A questão é que isso exige uma certa previsibilidade [de fato, a pós-produção dos filmes da Marvel é quase padronizada], test screenings e não assumir nenhum risco -- exige sacrificar a originalidade, juntamente com qualquer diretor que pense que a sua personalidade deve estar no filme: o Homem-Aranha de Sam Raimi é um filme de Sam Raimi, enquanto que Homem-Aranha: De Volta ao Lar, é o filme de uma linha de montagem.

A DC ainda pode estragar isso, e talvez o trágico afastamento de Zack Snyder seja o início desse fim [e eu digo isso mesmo considerando Watchmen, o filme, um insulto pessoal]. Também não ignoro que os filmes da DC dependem mais de CGI do que os filmes da Marvel, que Esquadrão Suicida foi remontado por test screenings, que eu acabei de dizer que Mulher Maravilha segue o padrão de BvS

O ponto, no entanto, é que esse padrão tem mais voz própria e é mais arriscado que o padrão da Marvel: a ressonância cristã, por exemplo, pode tanto expor o filme à patrulha interna [como os surtos de lacração que ele gerou parece confirmar], quanto ser um obstáculo na sua exploração comercial no mercado chinês [Mulher Maravilha vai chegar perto dos 90 de dólares de arrecadação por lá; BvS chegou a 100; isso é menos do que Homem-Formiga, que  fez 105, enquanto que Vingadores: A Era de Ultron passou de 240]; o arrojo visual pode ser confundido com pretensão facilmente debochável. É evidentemente mais fácil fazer um filme que as pessoas vão gostar se você está repetindo a fórmula de um filme que as pessoas gostaram.

Claro que a originalidade tem o seu lado positivo. Homem-Aranha: De Volta ao Lar faz mais metapiadas com filmes da DC do que com filmes da Marvel. Thor: Ragnarok, que aparentemente é a tentativa da Marvel de fazer um filme dos Guardiões da Galáxia com um vingador, não usou apenas uma música dos anos setenta como trilha sonora: usou o grito de Robert Plant no início da Immigrant Song, que é a origem do solo de violoncelo elétrico de Tina Guo que é a marca registrada da trilha de Mulher Maravilha [e não vamos nem começar a falar de trilhas sonoras originais, invariavelmente marcantes nos filmes da DC e esquecíveis nos filmes da Marvel].

A originalidade de BvS estava soterrada pela confusão: o grande mérito de Mulher Maravilha é ter conseguido, sem precisar de uma versão estendida de três horas, parecer mais original do que odiável. [RESENHAS[ETCETERA]

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