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Essential Spider-Man vol. 1 e 2
Stan Lee, Steve Ditko e John Romita Sr.
[Marvel, 2006 e 2011]
Existe um antes e depois de Steve Ditko [+] na história do
Homem-Aranha. O paradoxo só é aparente: ainda que Ditko seja o primeiro
desenhista regular do personagem, ele o encontrou assim para devolvê-lo assim.
As diferenças entre as duas imagens superam a PISTOLA DE
TEIAS: ao contrário da primeira versão, de Jack Kirby [+] [pelo que se diz, uma
versão genérica de The Fly, personagem que o rei co-criou com Joe Simon [+]], o
Homem-Aranha de Ditko parece um adolescente escorregadio e ameaçador, não
um ícone sólido e inspirador.
Mas isso é o nível PLAYMOBIL de CRITICISMO SUPER-HERÓICO. O
que nos mostra a leitura das 41 edições de gibis do Homem Aranha que Steve
Ditko desenhou [Amazing Fantasy #15, 38 edições de Amazing Spider-Man, e os
dois primeiros anuais da série], todas recolhidas em preto, banco e papel
chinelo nesses dois Essentials, é que existe um antes e um depois DENTRO DELAS;
e que esse “depois” está muito mais perto de uma versão Ditkoniana de um ÍCONE
do que de um ADOLESCENTE.
A mudança acontece gradualmente, mas se eu tivesse que
apontar o lugar concreto em que a mesa virou, sinalaria Amazing Spider-Man #23.
Antes dessa edição, o Homem-Aranha protagonizava histórias que eram aventuras
super-heróicas cujo charme estava no contraste desmistificador entre as
fantásticas aventuras do herói mascarado e a cômica [às vezes trágica] vida de
Peter Parker. Veja, por exemplo, essa página [de Amazing Spider-Man #1 [o
Homem-Aranha acabou de evitar uma tragédia espacial, daí a cápsula no início da página]:
As histórias basicamente seguem uma estrutura fixa: surge um
vilão de roupa espalhafatosa [a moda é a temática animal: Abutre, Escorpião,
Camaleão, Kraven], que de alguma forma representa um risco para a cidade;
paralelamente, Peter Parker enfrenta problemas em sua vida pessoal, normalmente
relacionados a algum obstáculo à concretização de seu INTERESSE ROMÂNTICO [Liz
Allen ou Betty Brandt, dependendo da altura do campeonato] -- como em uma
comédia romântica super-heróica.
As edições #4 e #8 são bons exemplos. Na primeira, temos a
primeira aparição do Homem-Areia [um vilão-vilão, com direito a risada maligna,
não o ladrão com bons sentimentos do terceiro filme de Sam Raimi]:
Logo após derrotá-lo, Peter Parker vai da vitória ao
fracasso -- a aventura fantástica é contrastada com a sua vida de adolescente
“normal”, e o seu interesse romântico é frustrado:
Na segunda temos uma batalha em tom de galhofa entre o
Homem-Aranha e um COMPUTADOR SUPER-INTELIGENTE. A história puxa para o humor [perceba
como o vilão é ameaçador] e não por acaso é ambientada na própria escola em que
Peter Parker estuda -- a sua vida estudantil é o alívio cômico da série. Flash
Thompson é sempre um fanfarrão [a sua vaidade excessiva e vazia faz dele um
personagem cômico arquetípico, o Miles Gloriosus]; nessa edição, ele é
retratado com caretas dignas de um gibi do Archie:
O outro NÚCLEO CÔMICO dessas histórias é o Clarim Diário, o
que você deve reconhecer como o jornal para o qual Peter Parker, fotógrafo
free-lance, habitualmente vende suas fotos. A dinâmica é a mesma [fanfarrão e
interesse romântico continuamente frustrado], em versão ALITERADA.
Apresento para vocês J. J. Jamenson e Betty Brandt, se eu fui sutil demais. |
Duas histórias, por outro lado, fogem a essa regra: tanto
Amazing Fantasy #15, a origem do personagem, quanto Amazing Spider-Man #6,
primeira história [e origem] do Lagarto são tragédias com uma lição
moral explícita [aliás: a história de origem de personagens de arte popular normalmente são tragédias com uma lição moral].
Acompanhe: vida feliz...
Com a edição #23, as mudanças nesse esquema começam a se
tornar perceptíveis. Primeiro, ainda que a procissão de espancamento de vilões
continue, esses se tornam cada vez mais realistas e menos coloridos. O Duende
Verde se associa com mafiosos [quer se tornar um proto-Rei do Crime, #23];
Mysterio volta, mas em uma história que é mais manipulação psicológica
paranoica e menos troca de porrada [#24]; as suas atividades são desenvolvidas
em lugares mais SINISTROS; saem os vilões com poderes de animais, entram outros
com roupas “normais”:
Enquanto que os vilões se tornam menos coloridos, mais ardilosos e ligados ao submundo, o Homem-Aranha fica mais ASSERTIVO, seguro de si e HERÓICO. Paralelamente, a sua vida pessoal se torna menos cômica e mais... injustiçada. Logo, o personagem vira o que se transformaria no típico protagonista dos gibis de Steve Ditko: heroico e decidido [em uma edição, oferece as suas fotos para o jornal concorrente, para obrigar J. J. Jamenson a dar-lhe um aumento], mas também solitário, incompreendido e rodeado de invejosos:
Não são os únicos elementos Ditkonianos dessas histórias: a essas
alturas, Ditko já era um Objetivista, defensor da filosofia anti-relativista de
Ayn Rand. Perceba como os policiais que ajudam o Homem-Aranha na edição #27 são
corajosos e dedicados...
Isso, claro, não é coincidência. A primeira edição em que
Ditko foi creditado como plotter [encarregado de elaborar a trama da história;
Stan Lee [+] recebe crédito como escritor por ter se encarregado dos diálogos; aliás, e que diálogos: expositivos, normalmente narram o que as imagens mostram e oscilam entre dois registros, o infame e o pomposo]
foi a #26. Como se sabe, isso foi o reconhecimento de uma situação
pré-existente: a responsabilidade de Ditko pela criação da história só fez
crescer ao longo da série. A inconsistência sobre a identidade do Planejador
Mestre na edição #30 [o texto diz que é o Gatuno; nas edições seguintes,
descobrimos que é, SPOILER, o Dr. Octopus, FIM DO SPOILER] mostra que, logo
depois, de Ditko ser creditado como plotter, os dois sequer conversavam mais.
Mas o crescimento das atribuições de Ditko não foi em vão: a
história do Planejador Mestre [Amazing Spider-Man #31 a #33], seu ápice em
relação ao personagem e culminação de uma história que se desdobrava como pano
de fundo a meses [outra coisa típica de Ditko, aliás] é presença obrigatória em
qualquer lista de melhores histórias do Homem-Aranha.
A trama é simples: a eterna Tia May está doente, a beira da
morte [fruto de uma intoxicação radioativa, decorrente de uma transfusão de
sangue em que foi doador o seu sobrinho, Peter Parker: e não se esqueçam que
ele é um personagem definido pela culpa de ter deixado o seu Tio Ben, esposo de
May, morrer]. Para seu tratamento, necessário um remédio que exige, para sua
elaboração, um elemento-McGuffin – que, comprado por Parker, é roubado pelo Dr.
Octopus.
São duas edições de um Homem-Aranha EM CHAMAS, FUSTIGANDO o
mundo criminoso enquanto apanha como um condenado, mediadas por uma sequência
de superação da qual o personagem ressurge “curado” da culpa pela morte do Tio
Ben, em uma das sequências mais hiper-analisadas da história dos quadrinhos.
BATISMO. |
Ao longo de sua passagem pelo personagem, a evolução no traço de Ditko também é perceptível, ainda que sem um solavanco repentino como o da edição #23 em relação ao desenvolvimento do personagem. Algumas características são mantidas: Ditko [ao contrário de Kirby] desenha um Homem-Aranha ARACNÍDEO, com uma vocação por andar por tetos, esgueirar-se por cantos e aparecer em ângulos inusitados, com aspecto borrachesco e com um enquadramento subjetivo e ligeiramente torto. As cenas de luta são acrobáticas: no seu transcurso, poucas vezes o personagem coloca os pés no chão:
No entanto, o Homem-Aranha vai se tornando cada vez mais
“ombrudo” e Peter Parker, menos NERD TARJA PRETA – o que acompanha, na trama, a
consolidação do personagem como um HERÓI maiúsculo.
Os quadrinhos também ficam maiores e menos atulhados [uma
característica dos gibis de Ditko dos anos 50/início dos anos 60]: as páginas
deixam de se organizar em um layout de três colunas e três filas, e passam para
um esquema de duas colunas de três quadrinhos.
Mas a diferença maior está no uso de abstração. Ainda que o
realismo puro e duro seja frequentemente sacrificado em prol da narrativa
[cenas de reflexão, por exemplo, encontram-se ambientadas no topo de
arranha-céus, sem que exista a menor preocupação em estabelecer um motivo
coerente para o personagem ter chegado lá], no início, Ditko reserva desenhos
abstrato-esquemáticos apenas para a página de abertura da história [aquela que
funciona como uma sub-capa, ou uma manchete do resto da história]. Com o tempo,
no entanto, começam a aparecer cada vez com mais freqüência dentro da própria
história, ao mesmo tempo em que os personagens se aproximam cada vez mais de
idéias corporificadas [heroísmo, inveja, parasitismo, etc].
Kraven se disfarça de Homem-Aranha para ameaçar J. J. Jamenson: a trama em um quadrinho abstrato. |
É a última história de Ditko com o personagem. Na edição
seguinte, John Romita Sr. [+] passa a desenhá-lo. Na quinta página,
Harry Osborn, Gwen Stacy e Peter Parker se tornam grandes amigos. Ditko logo
deixaria a Marvel, para somente voltar vinte anos depois, pela porta dos fundos
e por pouco tempo. [PARA OS FORTES]
6 comentários:
Leitura fantástica do personagem ... matéria digna de prêmio... qualquer fã do atira teias dirá o mesmo.
Parabéns ao autor da postagem
@Pastor Edemerval:
Opa, valeu! Se tu gostou, a melhor forma de acompanhar as atualizações do site é através do Facebook [http://www.facebook.com/NewFrontiersnerd]. Sempre que possível, rola uma resenha!
Obrigado de novo pelos elogios e até a próxima!
Texto foda demais. Tenho percebido nos seus textos uma capacidade crítica no que tange à analise de quadrinhos raramente vista na nossa patética blogosfera. Parabéns.
A propósito, vc tá no MBB né?
@Edmundo Suíno:
E aí, mestre, tudo certo?
Pô, obrigado pelos elogios. Achei que o resenhismo quadrinístico aqui da terrinha tava precisando de algo um pouco mais profundo e resolvi dar uma tentada.
E eu tô no MBB sim, precisamente como Vicente [NFN]. Mas não sou dos mais ativos!
E os elogios são sinceros. Além de vc, só o Doggma do Black Zombie, o Luwig do The Pulse e o Érico Assis é que sabem do que falam, e o fazem com profundidade e tesão. Para quantidade de sites e blogs sobre HQ que existem isso é muito pouco. No mais, continue mandando ver nestes textos pois são realmente muito bem fundamentados. Abraços cumpadi!
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